TRISTEZAS DE UM QUARTO MINGUANTE
Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste…
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!
Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!
O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 quilos no epigastro…
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.
Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.
Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!
Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!
Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6a-feira, 3 de Maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!
A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!
— Uma, duas, três, quatro… E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: — Uma…
Mas novamente eis-me a perder a conta!
Sucede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida — aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura! —
A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse…
Começo a ver coisas de Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!
Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.
Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa…
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes
Então dois ossos roídos me assombraram…
— Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram.
Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro…
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.
Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos — vis raízes adventícias —
No algodão quente de um tapete persa.
Por muito tempo rolo no tapete.
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!
A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo…
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto-Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.
Babujada por baixos beiços brutos,
No húmus feraz, herética, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.
De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.
Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!
Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, mima última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!
Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!
Augusto dos Anjos
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste…
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!
Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!
O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 quilos no epigastro…
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.
Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.
Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!
Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!
Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6a-feira, 3 de Maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!
A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!
— Uma, duas, três, quatro… E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: — Uma…
Mas novamente eis-me a perder a conta!
Sucede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida — aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura! —
A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse…
Começo a ver coisas de Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!
Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.
Vêm-me à imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa…
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes
Então dois ossos roídos me assombraram…
— Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram.
Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro…
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de conchas.
Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos — vis raízes adventícias —
No algodão quente de um tapete persa.
Por muito tempo rolo no tapete.
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!
A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo…
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto-Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.
Babujada por baixos beiços brutos,
No húmus feraz, herética, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.
De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.
Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!
Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, mima última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!
Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!
Augusto dos Anjos
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